Chego apressado e com uma película de suor que me cobre todo o corpo; é fina e fria como o gelo das madrugadas. Entro rapidamente no quarto, com três largos passos fico sentado no cadeirão junto à mesa dos papéis. Num movimento de mole desespero e de incerteza crónica, procuro o pacote minúsculo que trago no bolso mais pequeno das minhas calças. Aquele bolso feito para colocar os pacotes minúsculos que carregam o único e possível descanso terreno de quem usa aquelas calças.
Agarro-o com dois dedos e tiro-o do bolso. Coloco-o em cima da mesa e através do fino plástico azul consigo deslumbrar a cor castanha daquele pó essencial. Quase que sinto o seu fumo a passar pela minha boca e a prender-se nos meus pulmões.
Isso faz-me ficar ainda com mais pressa.
Estou preparado, tenho tudo o que preciso, nervosismo, folha de alumínio, vontade de fugir da minha vida, navalha, mãos suadas, isqueiro e cigarros. Começo pela folha de alumínio, é preciso cortar dois quadrados do tamanho de uma mão, faço isso como quem beija e acaricia uma mulher só para ter sexo, preliminares desnecessários. Depois de ter esses dois quadrados, dobro um em quatro partes para que fique mais pequeno e mais forte. Puxo de um cigarro e enrolo essa parte ao cigarro. O objectivo é dar-lhe uma forma redonda para que, quando tirar o cigarro, consiga fazer desse quadrado um tubo perfeito. Este não é. Ficou imperfeito como tudo o que faço e tudo o que sou, mas isso não importa. O que importa é que este ansioso preliminar terminou. Pego na navalha e com um corte prensado abro o pacote (que, neste momento, é o centro da minha vida).
Tenho o cuidado de não deixar cair nenhum pó.
Tudo é necessário.
Com cuidado e mãos trémulas coloco o pó no centro do quadrado da folha de alumínio e o tubo imperfeito na minha boca. Faço com que a folha não deixe cair nenhum pó. A mão direita procura o isqueiro e encontra-o. Acende-o e coloca-o debaixo da folha de alumínio. O pó, ao ser tocado pelo calor da chama, transforma-se em líquido. Transforma-se numa bolha fumegante de um negro liso e castanho cor de sangue. O primeiro fumo que me chega ao nariz dá-me vómitos (que eu controlo perfeitamente) e faz com aquele cheiro se cole a tudo. Inclino a folha de alumínio, normalmente chamada de prata, para que esta preciosa bolha possa escorregar e durar-me o maior tempo possível. Cheguei ao ponto onde queria chegar e de onde nunca queria partir. Dou lume e a bolha começa a correr, nesse momento começo a aspirar aquele fumo que tem um horrível sabor a sacrifício. Inspiro o suficiente para não ser demais ao ponto de me levar a vomitar e não ser de menos ao ponto de não sentir os primeiros efeitos. Foi pouco fumo, mas algo na parte de dentro da minha nuca tornou-se diferente. Uma paz egoísta começou a alojar-se aí, um estado diferente, uma estranheza mole e esponjosa. Num lento expirar deito fora tudo o que restava de fumo nos meus pulmões. A boca ficou com um gosto horrível que é preciso aguentar. Tornou-se seca e vazia, onde a língua bate rija contra os dentes fixos e implacáveis e contra o céu-da-boca negro e cinzento como eu o imagino. Continuo a fumar. Há quarta inclinação da prata eu sou outro. Surge em mim a calma que existe no fundo do oceano, torno-me uma pedra com olhos e boca. Sou uma árvore com pernas e pensamento. Sou uma montanha sentada num cadeirão.
A prata começa a ficar riscada com o correr da bolha, tal como as paredes brancas dos montes do Alentejo ficam riscadas pelo passear dos caracóis durante o Verão. Estou completo. Sinto o crânio cheio de uma pressão mansa, uma energia calma e poderosa. Começo a funcionar como Deus. Não existem problemas ou os que existem não passam de pormenores que precisam de ser enxotados com a mão. Continuo a fumar. Sinto-me muito bem, sinto-me doente. A bolha começa a diminuir, cada vez se torna mais pequena e cada vez aquela prata se parece mais com uma teia de aranha. Os rastos da bolha começam a fazer formas geométricas imperfeitas. Estou cinco vezes mais pesado que habitual. Os movimentos tornaram-se lentos e cansados. Apetece-me parar tudo e ficar de olhos fechados a sentir o meu respirar. A sentir este mole prazer que aparece em explosões, surdas e mudas, por todo o meu corpo, por todo o espaço de corpo que tenho. Faço uma pausa antes de acabar com a bolha. Sou feliz mesmo sabendo que só o sou por algumas horas. Recosto-me no cadeirão e relaxo todos os músculos, ossos e pensamentos do meu corpo. O tempo é contado em respirações. Uma vontade de vomitar nasce na ponta inferior do meu estômago, entretenho-me a vê-la crescer, a vê-la subir. É maravilhoso estar vivo. Acho que não vou conseguir acabar com a bolha, acho que me vai fazer vomitar. (Mesmo assim.) Vou arriscar. Num bafo cuidadoso, com o cuidado de quem enfia comida na boca de um acamado crónico. Respiro esse último fumo enquanto assisto ao ferver final da bolha e à sua transformação numa crosta seca e cinzenta anunciadora do fim dos sonhos. Largo tudo. Já não preciso de nada. Encontro uma posição confortável e quase que adormeço a observar as náuseas que, em vagas, me sobem meigamente à boca pelo estômago, como crianças que correm rua acima rua abaixo só para sentir o vento na cara. Sei que é uma questão de tempo até que uma me faça vomitar. Sei, também, que esse vomitar pode ser fatal. Mas isso não me interessa por agora. Estou de olhos fechados, quase que adormeço de prazer no cadeirão. Apenas me mexo para acalmar as comichões que me surgem na cabeça, no rosto, no nariz… Talvez o nariz seja o pior. É um gesto repetido, o de coçar o nariz.
As náuseas continuam.
Até que uma me obriga a mexer.
Faz-me endireitar o tronco, que repousava enrolado.
Tive que abrir os olhos.
Com essa náusea chegou também o medo.
Respiro devagar para a controlar. Tento ser o menos agressivo possível em tudo o que faço. Qualquer gesto pode trazer consequências inesperadas, pressinto-o. Sento-me meio curvado, meio como quem abraça alguém para fazer sentir bem e controlar-lhe a revolta. Fico assim durante alguns momentos. Agora, começo a sentir um mal-estar na forma duma pedra grande e redonda que me apareceu na base do estômago e que lentamente vai subindo. Sinto que não há nada a fazer. Não há maneira de a parar. Ela arrasta tudo consigo. Ela sobe. Até que chega à minha garganta. Num reflexo, o meu corpo entrega-se a um espasmo e sou projectado para a frente por um vómito doloroso, vazio e quente. Pouco há para vomitar a não ser esta vontade de vomitar (deixei de comer há dias porque me cansa muito mastigar e porque toda a comida se torna cinza na minha boca). Estou de joelhos, mãos no chão, boca aberta e garganta trancada por convulsões amargas e quentes. Quero vomitar, mas não o consigo fazer. Não há nada para vomitar, mas um impulso cego obriga-me a fazê-lo. A garganta trancou do esforço, o meu medo tornou-se pânico. Era isto que eu não queria, é isto que está a acontecer. Não consigo vomitar e agora também não consigo respirar. A garganta trancou. Consigo respirar em pequenos goles de ar. Quantidades quase imperceptíveis e quase insuficientes. Este esforço para respirar faz o som horrível de quem está a sufocar. Olho a morte nos olhos. Não sei se consigo mais um gole de ar, cada vez se torna mais difícil, cada vez a garganta está mais cerrada. Tenho os dedos cravados na alcatifa. Todo o meu corpo é tensão e garganta é um músculo preso num apertar absurdo. Está-me a fazer morrer. Estou a perder a força. Em vez de ar respiro um chiar forçado. Respiro um desespero final. Perco as forças. Caio para o lado. Com toda a força que me resta tento respirar. Mas não consigo. Um branco sem cor começa a tomar conta de mim, dos meus olhos, dos meus pensamentos… O desespero cede ao largar. As contracções internas do meu tronco marcam o tempo.
Foi aqui que nasci.
A CORAGEM DE EDUCAR CONTRA OS BRUTOS
Há 1 dia
Que prazer literário que é este texto. Muito coeso, bem estruturado a meu ver, pelo menos encaixa bem no meu jeito de ler. Consigo imaginar todo o cenário que compõe esta peça, todos os palpitares que nos sugeres por palavras e eu completo de imaginação. Uma linha condutora agridoce bem ao meu gosto, confesso-o. Delicioso!
ResponderEliminarBoa literatura e texto descritivo. Desconhecia que tinhas um blog mas gostei do que li. Vou começar a seguir. Abraço. JD
ResponderEliminarMuito bom. Denso. Cru, mas verdadeiro. Como tu.
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