domingo, março 28, 2010

O Livro do Desassossego

"O coração, se pudesse pensar, pararia."

"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do
abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma
prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis,
porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao
que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao
que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até
mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e
canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que
me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro
dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se
não o lerem, nem se entretiverem, será bem também."

* * *

"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como
sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a
substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de
milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança
sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo
mais porque vivo maior."

* * *

domingo, março 14, 2010

Espamo

Jesus que espasmo!
Deus tocou-me,
doce toque
de morte,
de prazer,
de loucura e arder,
escrever
até morrer
a palavra do pensamento
a crescer por dentro
a partir do que sou
vivi e vou
vou e voltei
sempre aqui
junto a ti
e a mim.

sexta-feira, março 05, 2010

Só Sei Falar de Mim

Gostaria de escrever sobre o mundo, sobre as suas coisas e os seus problemas. Mas, só sei falar de mim. Não quero com isto dizer que eu não sou do mundo. Antes pelo contrário, falar do mundo é falar de nós, já que falamos de dentro da “nossa casa” e o que vemos é através das “nossas janelas”. Contudo, mesmo sabendo isso, eu continuo a querer falar só do que se passa dentro da “minha casa”. Só sinto vontade de escrever sobre a minha vida interior, e, mais precisamente, sobre as minhas angústias e medos. Se escrevesse em poesia até poderia produzir algo de interessante, mas não, eu apenas escrevo para aliviar o pensamento, através duma prosa de qualidade duvidosa.
Pronto, devo de admitir que, passados alguns anos, retiro prazer em reler esses textos (nem sei bem como nomeá-los) e constatar que muitas dessas aflições já desapareceram. Tenho também a esperança, muito secreta e patológica, de que depois de morrer alguém os encontre e os leia e me ache uma pessoa muito interessante e que assim continue a seduzir depois de morto, o que será muito bom, pelo menos parece ser por agora, porque depois de morto não sei se a sedução irá ter alguns frutos já que não posso aceitar elogios nem convites sexuais.
Falar da morte seria bom. É assunto sério e poderia fazer uma bela prosa a partir daí, mas o que gosto mesmo é de falar de mim. Falar de como sou bom, quero dizer, de como sou mau, mas ao mesmo tempo bom por perceber que sou mau. Gosto de falar da minha incapacidade de ter namoradas. Fico sempre muito aliviado depois de escrever um bom texto sobre o assunto (bom texto segundo os meus critérios, claro). Qualquer coisa serve (desde que seja minha) para eu me lamentar roçando a esferográfica no papel ou pressionando teclas de computador. Bem, vou terminar este texto porque lembrei-me de um assunto interessantíssimo para escrever.